sexta-feira, 27 de abril de 2018

autobiografia de um povo massacrado por um crápula

a gente escolhe passar humilhação
porque acredita que um dia vai melhorar
um dia o algoz se transformará no salvador
um dia o tirano virará um estadista
e deixará de ser prisão pra se tornar liberdade
mas o fato é que o algoz continuará matando
o tirano continuará cada vez mais tirano
e a prisão vai se tornando masmorra
mas prenderam a gente também em pensamento
ao ponto de a gente escolher passar humilhação
não nasci ontem
nem durmo de touca
e sei bem esperar o peixe morder a isca
quando navego

enquanto navego na web
vou jogando syberminhocas
e os baiacus que registram visita
julgando-se tubarões
acabarão
traídos pela própria ganância
(o peixe morre pela boca)

sou muito maior que esses peixes
mesmo que se pensem cardumes
pois beira mar não me falta
e quem me cuida não dorme

baiacu, chama os teus
que sei extrair teu veneno
e te janto sem precisar semana santa

robocop psicólogo


parafusos caídos
cabeça totalmente frouxa
vai perdendo a sanidade
vai perdendo a vitalidade
vai perdendo a noção das coisas

vai ganhando sensatez
vai virando adulto
vai aprendendo
afrouxando as amarras
e apartando parafusos alheios
foi numa noite quente como a de hoje que conheci gilmar e de pronto o convidei pra morar comigo. de pronto simpatizei com ele, que sentou no braço do sofá e caminhou sobre a minha mão, depois voou. leitores perguntarão por que eu teria dado esse nome a um besouro e eu responderei que gosto desse nome, mas principalmente porque meu amigo tinha cara de gilmar. e digo tinha porque ele resolveu procurar outro lugar mais iluminado. tive um certo receio que alguma visita maltratasse meu amiguinho de corpo robusto e zumbido em lá menor. gilmar era elegante, com seu jeito de me dizer que voltaria, mas como é o costume aqui em casa, é mais um que não volta. talvez eu precise rever a minha forma de agir. talvez eu não esteja sendo hospitaleiro suficiente ou esteja sendo demais. o fato é que o besouro resolveu bater as asas, assim como já o fizera a mariposa ano passado. depois dela, ainda tive a tragédia de ver a lagartixa poliana afogada na espuma dentro do box do banheiro. ainda teve a formiga que teve sua passagem talvez por causas naturais. mas o fato é que meus companheirinhos foram saindo daqui de casa das mais variadas formas: uma enterrada no xaxim da samambaia e a outra no vaso da flor de maio; uma bateu as asas e sumiu pela janela do quarto e o outro pela sacada.
só me restaram as traças.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

atordoante

circula por aí a notícia de que o cara aquele fez aquilo com aquele outro. dizem que tem testemunhas e tudo, mas até agora só se escuta falar que não se entendem. o estranho é que parece não haver um caminho pra se chegar ao ponto, à verdade, ao centro do caso ou sequer à existência materializada do caso. já foi dito que aquilo estava dentro das normas e ouvido que as infringia. houve quem tivesse certeza de que o cara era culpado e quem duvidasse da existência daquilo. porém já é sabido que só as palavras pronunciadas dizendo que aquele cara teria feito aquilo com o outro seria um fato. alguns ficaram amedrontados, outros confusos, poucos com total convicção, ainda que não conseguissem comprovar essa absoluta certeza. no final das contas, ou no início do problema, decidiram que o outro faria aquilo naquele cara. o outro sentiu-se poderoso e não parou mais, fazendo aquilo com outros e outros, até que se decidisse que um terceiro deveria intervir e fazer o outro parar de fazer aquilo com outros. no fim, já eram vários e vários fazendo aquilo com os demais.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

o amor é um clichê


quero enlouquecer de vez
e me perder em ti
teu cheiro de flor
batom vermelho ruivo
encarnado no lábio teu

minha índia da ponte mauá
meu doce fruto lejano

quero teu chegar de mansinho
ocupando teu espaço
teu veludo macio da voz
- demência justificada
a unha, a carne, o sangue
e a tua percepção

minha gata da madrugada
que me veio trazer a luz
que me veio trazer à luz

terça-feira, 10 de abril de 2018

angústia da dúvida (ou o caso do boné)

até hoje não consigo saber o que é pior: ser roubado sem saber ou sentir-se roubado sem ter sido. o fato é que as duas coisas são muito ruins. tudo isso me vem em mente pela história que passo a contar.
aconteceu há bastante tempo, quando comecei a carreira na escola pública.
um aluno que sentava próximo à minha mesa tinha um boné que havia ganho da avó que recém falecera. era algo de valor inestimável pro guri. certa feita, ele chegou triste na aula, sem o boné. sem que eu perguntasse, ele comentou que havia perdido, mas não conseguia imaginar como. só lembrava de ter usado a última vez num jogo de futebol, onde era goleiro do time. conversei com ele pra acalmar, falando que esses coisas acontecem, que a avó estava no coração dele e isso ele jamais perderia. o guri abriu um sorriso, demonstrando que estava reconfortado. passaram-se algumas semanas e eu vi com os meus próprios olhos o filho de um vizinho usando o mesmo boné. não era um parecido, era o mesmo, com os mesmos fiapinhos de linha do bordado soltos. através de amigos, soube que o boné não foi encontrado pelo meu vizinho, que sabia da história toda, mas que havia sido tirado de dentro da bolsa do meu aluno. pensei em contar toda história, mas o garoto estava tão bem que julguei melhor não falar nada, pois também sabia da natureza violenta dos pais do meu vizinho e que isso poderia gerar um problema bem maior. até hoje sinto a angústia do guri que ficou sem a última lembrança física da avó.
isso tudo me pôs a pensar como seria se fosse o oposto: se ele realmente tivesse perdido o boné e o outro que encontrou não soubesse da história toda. imagino que provavelmente o meu aluno não teria sentido a mesma tristeza, da mesma forma que não teria palavra minha que o fizesse sentir melhor.
queria muito que os leitores me ajudassem a entender isso melhor. de repente, contando algo semelhante que possa ter vivido nos comentários.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

humanidade fabular

a lebre apressada e metida perdeu pra tartaruga. a formiga e a cigarra descobriram que tudo pode ser útil numa coletividade, em algumas versões. a raposa e a cegonha quase se mataram de fome. o sapo aprendeu tarde demais que não deveria confiar no escorpião. a outra formiga aprendeu a não apostar com o elefante. o fazendeiro e o filho não aprenderam a interpretar. o menino foi apanhado pelo lobo. fim
moral da história: só o ser humano é capaz de fazer merda e não aprender

domingo, 8 de abril de 2018

ficção

última parte do sonho, lembrada só na noite seguinte
esperando uma pessoa que chegaria de longe num ônibus pra me encontrar. uma cobra desce do ônibus antes da pessoa e me dá um bote, mordendo exatamente no peito do meu pé. senti latejar na hora. tombei na hora. despertei com fortes dores no pé, que inchava muito rápido. só conseguia pensar que a visita ficaria assustada e daria meia volta. tentei gritar, mas a voz estava enrolada demais.
acordei sentindo um formigamento no pé e sozinho
sonho
dentro de um poço com uma água muito mal cheirosa e barrenta, preciso encontrar uma pedra específica. mergulho cada vez mais fundo e me sujo. aquele cheiro e aquele aspecto putrefactos vão entranhando em mim. encontro uma pedra e vou examinar. não tenho como sair do lugar antes de encontrar exatamente o que procuro, então é impossível levar pra lavar e acabo tentando limpar com cuspe. depois de algumas esfregadas, a certeza de ainda não ter encontrado. mergulho mais fundo, um punhado de pedregulhos eu vou descartando porque já no peso e no formato dá pra perceber que ainda não foi desta vez. sigo a busca até cansar e desistir. acostumo ao cheiro de esgoto e começo a me sentir confortável com aquele líquido nojento que me envolve até a cintura e que vai subindo lentamente. ouço uma voz pedindo que eu saísse e que aquele não era o meu lugar.
desperto
durmo novamente
agora num grupo de velhos amigos, todos contando das vidas felizes que têm. vibro a cada história. até que um deles me inclui numa história que eu sei que não fazia parte, que eu estava morando longe e não teria como participar. mas entro na mentira, porque afinal, não fosse isso eu não teria o que contar. daí fico confirmando: sim, eu tava junto, inclusive fui eu quem teve a ideia tal. e percebo que às vezes preciso participar da mentira inventada, ainda que a cabeça fique questionando quem seria que estava no meu lugar. finjo que isso não importa e volto a prestar atenção agora num casal de amigos que conta como é linda a história deles desde quando adotaram uma gatinha.

desperto assustado
ainda me sentindo sujo
e imaginando que as pessoas vão perceber meu cheiro a esgoto
mas preciso tomar um banho e ligar pra aquele amigo

quarta-feira, 4 de abril de 2018

rupestre

desenho na parede a lápis. cada linha traçada é um elefante feito de chumbo nas costas. e é estranho como essas estátuas estão bem acomodadas a ponto de não saírem. ao mesmo tempo. a sensação de que tudo é nas minhas costas acaba me deixando confortável. tanto que silencio. e enquanto percebo cada traço. também noto que há algo escondido. algo feito pelas minhas costas (aquele sonho com as cobras...). e lá vem mais um elefante de chumbo. aquela dispensa do trabalho que me fez ter que procurar outro.
- só pode ser isso!
e a sensação de que cada elefante foi ali colocado por alguém que se fez de bonzinho. volto a fixar a atenção no desenho. uma imagem aleatória que esconde um segredo (como se houvesse um sinal escondido dizendo "cuidado!"). parece o símbolo olímpico, mas são apenas dois aros. mais um elefante de chumbo.
paraliso
engasgo
percebo que além do peso, os elefantes de chumbo também intoxicam. mas mantenho a esperança de que um dia eu consiga me livrar de tudo isso. que eu consiga cobrir completamente aquele desenho nefasto. que os elefantes me deixem com o corpo mais forte. que eu consiga me curar do chumbo
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